“Preferia-se nomear senador ou mesmo chefe de departamento pessoas conhecidas por sua cultura, sob pretexto de que saberiam escrever os papéis oficiais em bela prosa; as escolas de retórica tornaram-se viveiros de administradores, pois a cultura elevava a seus próprios olhos o conjunto da classe governante.
‘O efeito produzido sobre os administrados foi mais duvidoso e as consequências para o andamento dos negócios foram catastróficas; desde o século I os editos imperiais são redigidos num estilo tão afigúrico e numa língua tão arcaizante que são pouco compreensíveis, até mesmo inaplicáveis (…)”.
“História da Vida Privada – do Império Romano ao ano mil”, Ed. Companhia de Bolso, organização de Philipe Aries e Georges Duby.
O texto acima relata o que ocorria em Roma no século I de nossa era. A realidade do Brasil de hoje traz algumas semelhanças, para dizer o mínimo.
São poucos os indivíduos que conseguem ler uma lei e entendê-la. A maioria, quando tenta, desiste na primeira frase para declarar em desânimo: “eu não entendo nada de lei…”
Se com a lei é assim, com as decisões judiciais a situação piora a níveis geométricos. Quando um cidadão não iniciado lê uma sentença, raramente consegue depreender se ganhou ou perdeu a ação.
Claro, a culpa não é do cidadão, mas do legislador e do juiz. Ambos são servidores da sociedade, precisam aprender a se comunicar com ela. Para entender uma lei, o requisito básico deveria ser compreender bem o idioma em que a mesma é redigida, ponto.
Vamos fazer um teste. Segue abaixo o artigo 1.829, I, do Código Civil, que trata da ordem de preferência dos herdeiros em caso de sucessão:
“Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens; ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;”
Diz para mim: o cônjuge concorre (divide a herança) com o descendente ou não? Em qual regime de bens ele concorre, em qual regime ele não concorre?
Não conseguiu entender? A culpa não é sua… Primeiro, uma frase afirmativa, depois uma ressalva (salvo se…), e dentro da ressalva uma alternativa (ou no…); em seguida, nova alternativa junto com uma condicionante (ou se…). Enfim, parece o enigma da esfinge.
A culpa é do leigo ou do legislador?
Veja se melhora a uma redação mais ou menos assim:
“Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I – Primeiro os descendentes, que recebem a herança sem a participação do cônjuge; no entanto, se o regime de bens for o da separação convencional de bens, os herdeiros deverão dividir a herança com o cônjuge em partes iguais. A mesma regra vale para o regime da comunhão parcial, onde existam bens particulares do autor da herança.
Tenho a impressão que ainda dá para melhorar mais…
E as sentenças? Diga o que se entende do texto abaixo:
“Ab initio, o nóvel artigo xxxx do diploma civilista não desincumbiu o consorte supérstite de manter as cártulas que demonstram a quitação dos alugueres reclamados. Com efeito, a mens legis dos dispositivos maculados autorizam a imposição de astreintes para a parte que não se desincumbiu de cumprir o múnus para o qual foi instada. Torna-se, pois, hialino que a tese esgrimada não encontra lastro no ordenamento pátrio.”
Entendeu? Não? Veja abaixo a tradução:
“O viúvo deveria ter guardado os comprovantes de pagamento do aluguel. Como não o fez, nem desocupou o imóvel quando intimado para isso, deve pagar a multa imposta pelo juiz em razão do descumprimento da ordem judicial”.
Esse parnasianismo das decisões judiciais (e das leis, despachos, e atos públicos em geral) se explica em grande parte pelo que já ocorria em Roma no século I: necessidade de aprovação pelos pares, os quais adotam o mesmo procedimento; convencimento de que pertencem a uma classe diferenciada da população, razão pela qual o distanciamento, no lugar de incomodar, torna-se uma afirmação daquela premissa; convencimento de que assim agindo mostra-se erudição.
Daí vem o desânimo: práticas como essas, que se repetem há 2000 anos, serão alteradas nos próximos 10, 30 ou 50 anos?
A edição de 13/10/2019 do jornal O Globo traz uma matéria sobre as diversas leis e normas em geral inúteis, mas pródigas em atrapalhar a vida das pessoas, e os negócios em particular.
Sobram leis que obrigam estabelecimentos comerciais a afixar cartazes em suas dependências: segundo o autor da matéria, são 23 cartazes atualmente. Deve faltar parede em muita loja por aí. Fora leis que obrigam os carros a trocar de placas, e depois voltam atrás; leis que obrigam a inclusão de kung-fu nos currículos das escolas, dentre outras.
A edição da segunda quinzena de setembro/2019 da revista Exame trata da eficiência do INPI. Traz o exemplo da Motorola, que pediu a patente do Star Tac (quem tiver menos de 30 anos, procura no Google) em 1994, época em que se tornou o aparelho de celular mais vendido do país, e a mesma só foi aprovada pelo órgão em 2015. Quem tem mais de 30, deve estar rindo, e quem tem menos, olha lá o Google para se divertir um pouco. É quase como deferir em 2015 a patente da máquina de escrever: serviu para nada. Em resumo, a ineficiência fez o órgão – ao menos nesse caso – inútil.
O único caminho para nos livrarmos desse câncer da burocracia desmedida, fim em si mesmo, fruto de um Estado gigante e ultrapassado, está na simplificação. Menos Estado, mais negócios, e simplicidade como regra.
Ao contrário do que se imagina, a simplicidade demanda esforço. Não confundir, claro, simplicidade com ausência de conteúdo ou de profundidade. Winston Churchill dizia que para escrever um discurso de 4 minutos, ele gastava 2 horas; já para fazer um discurso de 30 minutos, ele gastava menos do que isso. Esse é ponto: produzir complicações facilita a vida do administrador incompetente.
Tal premissa vale também para as empresas. Jeff Bezos, segundo conta Brad Stone no excelente “A Loja de Tudo. Jeff Bezos e a Era da Amazon”, proibiu apresentações em Power Point na empresa. Segundo ele, apresentações bonitas e longas escondiam falta de conteúdo e assertividade – além de desperdiçar o tempo de todo mundo. Determinou que tais apresentações fossem substituídas por um texto curto, em formato de narrativa, a ser distribuído aos presentes no início da reunião. Se a ideia é boa, pode ser expressa em poucas linhas e compreendida por todos. Mais do que isso é enrolação.