Contra toda a noção de bom senso, desafiando a lógica econômica, e manejando os conceitos jurídicos, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu em 18 de dezembro de 2019 ser crime o não pagamento de ICMS. E agora, como fica? Não pagou, vai preso? Imagina a alegria do fisco estadual com mais esse instrumento de pressão…
Se as Fazendas Estaduais já têm um histórico de ilegalidades na cobrança de tributos (só para ficar nas mais usuais: recusa em fornecer autorização para emissão de notas fiscais para inadimplentes, retenção de mercadorias em barreiras fiscais até que se pague o tributo, etc.), agora a tendência deve ser impulsionar processos criminais como regra.
É certo que para haver crime precisa estar presente o dolo, e caberá ao fisco demonstrar a intenção clara de o contribuinte manter-se inadimplente. Para os demais tributos, em caso de autuação, existe crime se ficar demonstrada a intenção dolosa de descumprir a legislação. Já no caso do ICMS, agora, bastar demonstrar a intenção de deixar de pagar o tributo. Em suma, foi criminalizada a inadimplência.
Contudo, como dito, deverá o fisco provar a vontade inequívoca de inadimplir. O inadimplemento por má gestão, por dificuldades financeiras, por erro, ou qualquer outra razão que não a vontade deliberada de deixar de pagar o fisco, não poderá ser criminalizado.
Outra questão relevante vai ser definir o responsável pelo crime. O diretor financeiro? O administrador? Qual administrador?
O enquadramento legal da decisão está no artigo 2°, inciso II da Lei 8.137/90, que tipifica o crime de apropriação indébita: “deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”.
A crítica mais flagrante a tal decisão está no fato de que, apropriação indébita, até aqui, se aplicava nas retenções em que o contribuinte de fato e de direito é o terceiro, e não o inadimplente, como no caso das contribuições previdenciárias. No ICMS, embora o consumidor final suporte o peso do tributo, o contribuinte é o inadimplente. Ou seja, a empresa que não paga ICMS, a princípio – ao menos, até ontem – não está retendo dívidas de terceiros, mas a sua própria. Ou seja, é caso de inadimplência pura e simples, e não apropriação indébita. Daí a indigência econômica da decisão…
A se considerar que a apropriação decorre do fato de o consumidor suportar o peso do tributo, posto que o mesmo faz parte do preço, abre-se um precedente perigoso, haja vista que, naturalmente, todos os tributos pagos pela empresa estão no preço do produto de uma forma ou de outra. Sobretudo os chamados tributos indiretos, tais como IPI, ISS, PIS e COFINS, além do ICMS, e até mesmo o Simples Nacional, que é a união de todos os demais tributos incidentes.
Essa decisão do STF não tem efeito vinculante, e foi prolatada em um caso particular, mas inegavelmente, vai influenciar todas as demais decisões daqui por diante. Daí que todos esses pontos vão se acomodar de acordo com o amadurecimento da discussão sobre o tema nas futuras decisões judiciais.
Apesar de o ônus da prova do dolo ser do fisco, não custa ao gestor adotar um comportamento defensivo quando da iminência ou da ocorrência do inadimplemento do ICMS. Isso significa documentar o motivo da inadimplência, reunir provas, ou, ao menos, fazer o registro da dificuldade financeira, da ausência de saldo bancário, dos compromissos conflitantes etc. Isso porque o fisco tem 5 anos para fiscalizar, e pode não ser trivial demonstrar determinas situações depois de tanto tempo, se não houver registro dos fatos pretéritos.
Assim como ocorre em todos os crimes tributários, a quitação do tributo extingue a penalidade: qualquer inadimplência que venha a ser quitada ou parcelada deixa de ser um problema penal. Nesse particular, o peso do estado nas costas do empresário ficou um pouco maior.